
A voz frequentou todos os ouvidos do mundo.
- Obrigado por sua colaboração. Respire fundo. Não doerá.
Infinitas trocas de olhares. Olhos bem abertos. Bocas escancaradas. Um tremor específico no corpo. Os blocos mobiliados esvaziaram-se de vida humanoide terrestre.
Flutuando alguns centímetros acima do solo, o ser luminescente procurava por consciência e batimentos cardíacos. Aquela região parecia livre, dada a inatividade em seu dispositivo de medição e o clima-sentimento agradável.
Deslizava livre pelas ruas da cidadezinha. Seu trabalho terminaria mais rápido e poderia voltar para a leitura dos apócrifos Arquivos de Xefanesz, sua recreação entre um sistema e outro. Os apócrifos dividiam-se em dezenas de volumes e já acabava o que ler. Entediava-se durante as viagens e, sem leitura, era ainda pior.
Pensou nos amigos enviados para as metrópoles da Terra. “Tanto espaço desperdiçado. Tanto a procurar. Tenho sorte.” Contentou-se à missão dada e sorriu antes de trincar a boca em pânico: um pulso rápido, porém baixinho, espocou na tela.
Em toda sua carreira, nunca encontrou um sobrevivente. Os registros de situações semelhantes não animavam. No sistema HR 8799, os enviados sucumbiram a uma nuvem senciente corrosiva presente no subsolo, aproximadamente um quilômetro abaixo da superfície. OS registros em vídeo são perturbadores.
Sua missão era eliminar o sobrevivente. Sentia-se pouco preparado para fazê-lo, apesar do treinamento. Era seu dever. Sabia de seu dever. Deveria. Tendo o pulso de desativação neural como ferramenta, sempre evitava excessos violentos. A partir desse ponto, restava-lhe formas primitivas de desativação.
Cortou o vento com a pressa de seu corpo. O rastro de luz alongou-se nas avenidas. Os batimentos intensificaram-se no aparelho. Dois dedos de sua mão ligaram-se, formando uma comprida espátula quente.
Intensos, os pulsos da vida pareciam lhe querer, chegado em perto, virando a esquina. Um golpe no que os carbonóides costumavam chamar de cérebro, fonte de todo mal e todo bem. Um golpe apenas e deveria bastar. Antes de entregar-se ao dever, o flutuante fechou os olhinhos. Dedos apontados, encarou a vítima, e deu de cara com ninguém.
Mas o dispositivo acusava a presença.
Girou em torno de si. Mirou o alto dos prédios. Estendeu a visão a quilômetros. Deu batidinhas no visor, o tum, tum mantinha-se rápido e alto, um alvo, seu primeiro – o que faria?
Levou um susto que lhe apagou a luz ao ouvir um som rouco de tons médios bem perto.
Algo tocou sua perna, macio e felpudo.
- Você? – falou para um gatinho saudoso. – Você! – alegrou-se.
Os animais domésticos saiam das casas, as expressões mais tranquilas, desconhecidas pelos carbonóides extintos. “Eles não tinham condições de saber disso”, pensou. “Que tanto perderam.”
A luminescência reduzida deliberadamente para não contaminar os pequenos. Aliviado, desfez os dedos de lança e levantou o felino, acomodando-o em seus braços macios e quentinhos.
- Cheguei tarde? – perguntou, riscando o espaço da cidadezinha, seguido por uma multidão de bichinhos livres
Demorou meses terrestres para colocar todos em sua nave. Levou uma bronca por ter demorado tanto.
A água subiu e deu-se o novo princípio de tudo. Sem os vícios anteriores.